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Martignoni, De Moraes e Todeschini Advogados Associados

A natureza e recentes desdobramentos do Sistema S

Ao final de fevereiro de 2020, o Brasil deixou de ser espectador na grave pandemia mundial do vírus Covid-19 para tornar-se, a época, o mais novo país a ter seu primeiro caso confirmado pelas autoridades de saúde.

Desde então o governo vem buscando, gradualmente, promover o confinamento social da população e simultaneamente manter a estrutura econômica e empresarial brasileira, por meio de diversas medidas que postergam o pagamento de tributos, de modo a evitar graves prejuízos sobretudo para pequenas e médias empresas, e uma grave recessão, causada pela diminuição do consumo, antes mesmo do encerramento do ano.

Entre as medidas efetivadas no âmbito federal até o momento, encontram-se a redução da alíquota de IOF para zero, nas operações de crédito a serem feitas até o final de julho, e a prorrogação do prazo de pagamento de diversas contribuições sociais e previdenciárias[1].

Foi declarada a redução, em 50%, das alíquotas das contribuições recolhidas por empresas e destinadas ao sistema de Serviços Profissionais Autônomos, conhecido popularmente como “Sistema S”, com exceção das contribuições destinadas à Sebrae, entidade responsável pelo fomento financeiro de micro e pequenas empresas.

Tal medida, de iniciativa do presidente da República, foi efetivada por meio da Medida Provisória 932/20 no dia 31 de março de 2020, vigorando a partir do dia seguinte. E por ser excepcional, produziria efeitos jurídicos somente até o dia 30 de junho.

A exposição de motivos desta medida provisória justifica as reduções das alíquotas de contribuição aos Serviços Essenciais Autônomos, alegando a redução em R$ 2,6 bilhões das despesas de empresas brasileiras, contribuindo para a preservação de empregos e manutenção da atividade econômica sem prejudicar o funcionamento das entidades do “Sistema S”, devido aos R$ 22,2 bilhões, em recursos financeiros, arrecadados em 2019. O princípio da preservação de empresas justifica a medida.

No entanto, a redução de alíquotas teve curta duração: em 8 de maio de 2020, a desembargadora Ângela Maria Catão Alves, membro do TRF da 1ª região, decidiu liminarmente pela suspensão da medida, mais de um mês antes da data inicialmente prevista[2].

De acordo com a desembargadora, a Medida Provisória 932/20 provoca impactos negativos na economia e no orçamento público a curto prazo, ainda que tenha caráter temporário.

O desarranjo provocado pela brusca alteração das regras tributárias têm o potencial de dificultar o combate à pandemia e ao desemprego generalizado, interferindo na política econômica de longo prazo projetada pelo Poder Executivo Federal e gerando potencial lesão à ordem pública.

A decisão também moveu a resolução final da questão para o Superior Tribunal Federal, por conter matéria constitucional de competência exclusiva do mesmo.

Poucos dias depois da suspensão liminar da medida provisória, a União moveu a Suspensão de Segurança 5381 contra esta decisão. A SS 5381 foi decidida monocraticamente no dia 18 de maio, pelo ministro Dias Toffoli.

Confirmando a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar o caso, em virtude do Artigo 240 da Constituição Federal, o ministro suspendeu os efeitos da decisão do TRF da 1ª Região, alegando que a suspensão consiste em uma usurpação, pelo Poder Judiciário, das competências exclusivas do Poder Executivo, que é o responsável constitucional por conduzir políticas públicas, por meio de seus critérios de conveniência e oportunidade.

O ministro também alegou que houve violação da competência dentro do Poder Judiciário para determinar a constitucionalidade da medida provisória, pois tal ato caberia exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal, em virtude do julgado das ADINs de nº 6.373 e 6.378, ajuizadas por entidades de classe como a Confederação Nacional dos Transportes (CNT).

A decisão do relator Ricardo Lewandowsky aplicou o rito previsto no artigo 12 da Lei 9.868/1999, determinando que a decisão final da questão deve pertencer somente ao Plenário do STF[3].

É crucial compreender a natureza jurídica do “Sistema S”, para assim avaliar se é constitucional a decisão liminar do TRF-1. Ao contrário de quase todos os demais órgãos organizados para executar garantias constitucionais, o “Sistema S” não possui um regramento jurídico estruturado por lei.

Pois, apesar de cooperarem com o poder público, trata-se de um conjunto de pessoas jurídicas de Direito Privado, que não integram a Administração Pública Indireta.

Ainda assim, estão sujeitas alguns controles governamentais, em contrapartida a obrigatoriedade de contribuição parafiscal que as sustente, conforme determina o artigo 240 da Constituição Federal. Contribuições ao Sistema S são arrecadadas pelo INSS e repassadas às entidades, não sendo financiadas pela União, estado e municípios.

Entre estes meios de controle, destaca-se o dever de prestar contas ao Tribunal de Contas da União, que costuma estar presente na lei Instituidora de cada entidade. Entretanto, não há menção, por tratarem-se de pessoas jurídicas de Direito Privado, de qualquer necessidade de prestação de concurso público, ou de que deve-se vencer licitações para atuar nas atividades de aprimoramento da mão de obra. Os empregados destas entidades estão submetidos à CLT.

Em 2014, o STF decidiu que, de fato, os serviços autônomos prestados pelas entidades devem ser isentos de concursos públicos para a contratação dos profissionais que integram seus quadros, em virtude de seu caráter privado e da necessidade de preservar-se a autonomia administrativa das mesmas.

Não se submetem, portanto, as exigências do artigo 37 da Constituição Federal. O  RE nº 789.874/DF, relatado pelo ministro Teori Zavascki, discute especificamente o enquadramento jurídico da entidade Sest (Serviço Social do Trabalho), voltada para a área de transportes.

Definindo-a como isenta dos princípios da Administração Pública, assim como suas semelhantes, o julgado limitou tal controle apenas ao Tribunal de Contas da União, por considerá-lo um controle essencial para promover a legitimidade da aplicação dos recursos arrecadados por entidades do sistema S[4].

Conclui-se que, segundo a jurisprudência, há função social relevante nas contribuições que sustentam as entidades do “Sistema S”, e portanto pode-se  interpretar o RE nº 789.874/DF para qualificar a Medida Provisória 932/20 como uma interferência indevida da Administração Pública sobre o funcionamento de tais pessoas jurídicas de direito privado.

Logo, a decisão da desembargadora Ângela Maria Catão Alves, que suspendeu a redução destas contribuições por meio de liminar, está de acordo com a Constituição, pois em suas palavras, atos do Poder Executivo, ainda que venham do presidente, não podem funcionar de forma contrária a princípios constitucionais.

Nenhuma autoridade, seja ela o TRF, o STF ou o Poder Executivo, poderá reduzir os recursos disponíveis para entidades que contribuem para o bem estar do trabalhador brasileiro.

A necessidade de se reduzir o ônus econômico as empresas não pode sobrepor-se a Constituição ou prejudicar o urgente combate a pandemia, que a cada dia aumenta seu número de mortos. Reduzir a proteção social não é a solução para a crise, sobretudo no momento atual.

[1] Disponível em: <https://www.jornalcontabil.com.br/a-anemia-das-medidas-tributarias-para-conter-a-pandemia/>.

 

[2] Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/quentes/326474/mp-que-cortou-recursos-do-sistema-s-durante-pandemia-e-suspensa>.

 

[3] Lei 9.868/1999. Art. 12. Havendo pedido de medida cautelar, o relator, em face da relevância da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, poderá, após a prestação das informações, no prazo de dez dias, e a manifestação do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, sucessivamente, no prazo de cinco dias, submeter o processo diretamente ao Tribunal, que terá a faculdade de julgar definitivamente a ação.

 

[4]  RE nº 789.874/DF: “Cumpre enfatizar, finalmente, que a não obrigatoriedade de submissão das entidades do Sistema “S” aos ditames do art. 37, notadamente ao seu inciso II, da Constituição, não exime essas entidades de manter um padrão de objetividade e eficiência na contratação e nos gastos com seu pessoal. Essa exigência constitui requisito de legitimidade da aplicação dos recursos que arrecadam para a manutenção de sua finalidade social. Justamente em virtude disso, cumpre ao Tribunal de Contas da União, no exercício da sua atividade fiscalizatória, exercer controle sobre a manutenção desse padrão de legitimidade, determinando, se for o caso, as providências necessárias para coibir eventuais distorções ou irregularidades.”

Fonte: Jota, 10/06/2020.

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