Emergências sanitárias e o cumprimento de obrigações em contratos civis e de consumo

Vírus, pandemia, crise... Todas as palavras põem em efervescência uma das mais primais preocupações humanas: a própria sobrevivência.

Em menos de quatro meses o mundo se deparou com uma doença de difícil controle, o COVID19, e sobre a qual chovem (des)informações de todos os lados. Na perspectiva normal de racionalidade e estabilidade, a alta confiança nos negócios dando certo é o norte. Já na escassez de produtos, na míngua e na crise, muitos se vêem até mesmo sem bússola.

A quarentena, defendida pelos profissionais da saúde para desafogar os hospitais, também provoca um grande distúrbio na economia. A escassez de produtos, falta de necessidade de trabalho, a impossibilidade de manter a linha de produção, de pagar o aluguel... Tantas obrigações são afetadas pelo imprevisto.

É nessa perspectiva que o Direito Civil se reafirma como guia das relações obrigacionais, pois ele está lá no momento em que a obrigação é assumida e também naquele no qual não está sendo cumprida.

O “não posso” de um afronta diretamente o “tenho direito” de outro, e assim surgem dúvidas e brigas. Afinal, quem arca com o prejuízo?

A discussão orbita em torno dos institutos da força maior ou caso fortuito que, para fins de responsabilização, são equivalentes na lei, sendo que essa discussão remonta ao direito romano.

A lei brasileira é singela e determina que “o devedor não responde pelos prejuízos decorrentes de caso fortuito ou de força maior, a não ser que tenha se obrigado diferentemente em contrato”.

Ocorre que no Brasil não há terremotos, vulcões, ciclones, e essa é virtualmente a primeira ocasião em que somos defrontados com uma pandemia na qual as pessoas devem ficar em quarentena, assim, ainda há grande incerteza nos juristas sobre os conceitos envolvidos, tais como “força maior”, “caso fortuito”, imprevisibilidade” já que o nosso histórico de casos é parco. Portanto, pertinente olhar para o mundo.

Em países da Common Law, o caso fortuito ou “Ato de Deus (Act of God)”, provém de forças da natureza, tais como as inundações e os incêndios não provocados, enquanto a força maior decorreria de atos humanos irresistíveis, tais como guerras, revoluções, greves e determinações de autoridades - o chamado fato do príncipe.

Dentro desses conceitos é possível interpretar uma pandemia tanto como caso fortuito quanto de força maior, na medida em que uma epidemia viral é um fenômeno da força da natureza e que eventuais determinações estatais - como ocorreu recentemente, com a decretação de emergência sanitária e fechamento de estabelecimentos de circulação pública.

Sobre a aplicação desses conceitos, em 2018 a corte texana julgou o interessante caso Tec Olmos e Terrace Energy Corporation versus ConocoPhillips Company. A Olmos tinha se comprometido a um cronograma de perfurações em favor da Conoco, mas em razão da queda nos preços de gás e petróleo a empresa não conseguiu o financiamento necessário para a execução da sua obrigação.

A corte decidiu que a flutuação imprevista no preço do gás e petróleo não poderia ser acobertado por uma cláusula genérica de caso fortuito ou força maior, sendo que o contrato deveria ter sido redigido de modo específico, prevendo a possibilidade de não cumprir a obrigação, ou atrasá-la, nessa hipótese de drástica flutuação nos preços.

Logo, o entendimento majoritário na doutrina do Common Law é que deve haver a imprevisibilidade no caso fortuito ou força maior. Ainda, a cláusula que prevê as responsabilidades deve ser o mais específica possível, para que não haja uma brecha desleal do devedor para com o credor.

Saindo de relações civis e comerciais e voltando ao Brasi, podemos ampliar a análise da força maior também para as obrigações dos fornecedores e prestadores no âmbito de contratos de consumo, sendo certo que pelo Código de Defesa do Consumidor a responsabilidade é objetiva, ou seja, os prejuízos do consumidor são ressarcíveis independentemente de culpa ou de dolo do fornecedor/prestador.

Entretanto, deve haver mínimo nexo de causalidade entre a ação/omissão do prestador e o prejuízo sofrido pelo consumidor, ou seja, também pode-se invocar a hipótese de força maior ou caso fortuito como defesa.

A título de exemplo, há exatamente uma semana (17/03/2020) o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou recurso da AES Sul e de consumidores em ação que buscava ressarcimento de danos decorrentes de fortes temporais que implicaram em 13 dias de espera até o restabelecimento da rede elétrica. No caso decidiu-se que as tempestades eram hipótese de força maior e que, portanto, a fornecedora não deveria indenizar os consumidores.

O precedente reitera o que a lei determina, no sentido de que o devedor da obrigação não responde pelos prejuízos decorrentes da força maior, a não ser que exista alguma cláusula contratual que determine o contrário.

Em suma, os debates sobre o nexo de causalidade e força maior serão reavivados, pois é certo que muitas obrigações não serão cumpridas corretamente após o surto do recente Coronavírus. Isso mostra que muito embora a tecnologia e a capacidade do homem de se precaver avancem exponencialmente com o tempo, os desafios de um mundo conectado e globalizado fazem fiel a esta balança, reacendendo os debates jurídicos sobre as responsabilidades dentro das relações civis e consumeristas.

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[1] Direito civil: responsabilidade civil / Sílvio de Salvo Venosa. - 13. ed. -São Paulo : Atlas, 2013. -(Coleção direito civil; v. 4) Pg. 57

[2]Direito civil: responsabilidade civil / Sílvio de Salvo Venosa. - 13. ed. -São Paulo : Atlas, 2013. -(Coleção direito civil; v. 4) Pg. 57

[3] ibid

[4] ttps://www.adamsdrafting.com/wp/wp-content/uploads/2018/06/TEC-Olmos-LLC-v-ConocoPhillips-Company.pdf

[5] Apelação cível 70083788398

[6] Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não eram possíveis evitar ou impedir.