Recuperação Judicial para as Associações Civis

A Lei de Recuperação Judicial é clara ao impossibilitar que as associações civis se submetam ao seu rito, igualmente como ocorre com os produtores rurais.

No entanto, os tribunais vêm possibilitando a utilização do procedimento pelos produtores rurais que não estão inscritos na junta comercial ou que estão inscritos há menos de 2 anos. Isso nos leva a questionar se realmente as associações civis não podem se valer da recuperação judicial.
Para contribuir para a reflexão, cita-se o caso da Cândido Mendes , associação civil que está em recuperação judicial em trâmite na 5ª Vara Empresarial da Capital do Rio de Janeiro.
Nesse contexto, surgem fervorosos debates acerca do tema.
De um lado, sustenta-se o rigor da lei, a qual não compreende as associações civis no rol de devedores que podem se valer da recuperação judicial, na medida em que não são sociedades empresárias. Simples. A legislação não permite.
De outro, há quem defenda que a finalidade primordial da Lei de Recuperação Judicial é a preservação da atividade desempenhada pelos devedores, considerando-os como geradores de riquezas, provedores de empregos, e arrecadadores de tributos.
Assim, aquele que estimula a atividade econômica, produz ou presta serviços de relevância social, deveria gozar de tratamento e possibilidade idêntica, sendo irrelevante sua natureza constitutiva, se associação ou sociedade.
Tratando-se de recuperação judicial, decisões contrarias Á Lei são frequentemente prolatadas. A matéria, muito particular, modela-se frequentemente a casos excepcionais, um após o outro.
Como exemplo, cita-se a prorrogação do stay period (prazo em que todas as execuções movidas em face da recuperanda são paralisadas), de 180 dias, expressamente referido como improrrogável pela lei, mas prorrogável , na prática dos tribunais, pelo prazo necessário para deliberação e aprovação do plano de recuperação judicial, o que leva, a depender do caso concreto, quase 2 anos, conforme números do Observatório de Insolvência .
Outro exemplo tormentoso é a recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), impulsionado por práticas do Tribunal de Justiça de São Paulo, de que haja perícia prévia para o deferimento do pedido de recuperação judicial, como se requisito legal fosse, sem que, no entanto, haja previsão no texto da lei para tanto.
O caso Cândido Mendes demonstra exatamente essa divisão de posicionamento.
Em primeiro grau, decidiu-se pela possibilidade da Cândido Mendes em requerer a recuperação judicial, considerando todo aspecto social que envolve o caso concreto. Afinal, estamos diante de uma das instituições de ensino superior mais antigas do Brasil, assim como o aspecto teleológico da Lei – a preservação das atividades geradoras de riquezas, empregos, tributos, bens ou serviços.
O Ministério Público do Rio de Janeiro, em sentido oposto, manejou agravo de instrumento em que pretendia, em suma, o indeferimento da recuperação judicial, uma vez que a requerente está constituída sob a forma de sociedade civil e, portanto, não poderia requerer a recuperação judicial.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em setembro de 2020, referendou a decisão de primeiro grau, considerando que “embora não distribua lucro entre seus associados, gera imensa riqueza para o meio social, comprovando assim seu caráter econômico, deve-se permitir o deferimento do processamento da recuperação judicial”.
Desta decisão, o Ministério Público opôs embargos de declaração, pendentes de análise pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
O debate está longe de ser encerrado, e deve ser incentivado.
A respeito, já é possível observar movimentos legislativos que visam alterar esse aspecto na Lei de Recuperação Judicial e Falência . Igualmente, vemos outras associações civis sinalizando o desejo de ingressar com o procedimento recuperacional, entre elas, curiosamente, o clube Botafogo de Futebol e Regatas, do Rio de Janeiro.
O projeto de reestruturação do Botafogo é audacioso. Passa pela alocação de elevados valores na parte administrativa do clube, e pela transformação da associação civil em sociedade anônima, profissionalizando todos os aspectos estruturais do clube, tornando-o uma verdadeira empresa.
Além de toda dificuldade financeira vivenciada pelo clube, há diversos outros desafios, entre eles a forma em que a sociedade foi constituída, o que inviabilizaria, em tese, a utilização do procedimento recuperacional.
Momentaneamente, mesmo considerando o caso da Cândido Mendes, precedente que certamente será invocado em outras oportunidades, não há como afirmar que as associações civis podem ingressar com a Recuperação Judicial.
Os doutrinadores Manoel Justino Bezerra Filho e Luiz Roberto Ayoub e Cássio Cavalli sinalizam pela possibilidade das associações civis em utilizar o procedimento recuperacional. Dissertam não haver sentido, atualmente, nesta divisão entre empresários e não-empresários para efeitos concursais, na medida em que a lei visa proteger a atividade econômica, conceito do qual não se excluem as associações civis, visto que, a exemplo da Cândido Mendes, podem prestar serviços relevantes a sociedade.
Não há um posicionamento sólido nos tribunais, muito pela raridade desses casos, o que torna difícil qualquer afirmação a respeito do tema. No entanto, historicamente, há julgados em que se decidiu pela possibilidade de medidas que venham para superar o estado de crise em detrimento de aspectos formais que a impossibilitassem, o que nos conduz a concluir que será admitida a recuperação judicial para as associações civis.
Por exemplo, cita-se o caso em que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) possibilitou que uma empresa em recuperação judicial pudesse licitar, considerando que este era o único caminho viável para o soerguimento da empresa.
Outro exemplo relevante, este mais próximo ao que se expõe nesta reflexão, é o caso da recuperação judicial da Ulbra , em trâmite na 4ª Vara Cível de Canoas.
Resumidamente, trata-se de uma universidade, anteriormente constituída sob a forma de associação civil, que alterou sua constituição, passando a ser sociedade empresária, meses antes de ingressar com o pedido de recuperação judicial, o que fez para evitar a discussão em tela, mas não evitou a enorme polêmica em torno do caso.
A universidade conseguiu o deferimento da recuperação judicial somente junto ao Tribunal de Justiça, revertendo a decisão de primeiro grau que não havia autorizado seu processamento.
De qualquer sorte, há razões suficientes para concluirmos que este é o caminho a ser trilhado nos Tribunais brasileiros: pela possibilidade das associações civis em utilizar o processo recuperatório.
Certo de que a Lei de Recuperação Judicial preconiza a superação do estado de crise, não é lógico inviabilizar que instituições em crise, por simplesmente adotarem uma ou outra roupagem jurídica, não possam se valer da recuperação judicial.

Parecer fornecido pelo jurista, junto aos autos do processo de recuperação judicial da ASSOCIAÇÃO SOCIEDADE BRASILEIRA DE INSTRUÇÃO e INSTITUTO CANDIDO MENDES, processo n. 0093754-90.2020.8.19.0001
A Construção Jurisprudencial da Recuperação Judicial de Empresas, 2ª edição, Forense, pág. 3
REsp 1.207.117/MG, de 10/11/2015; AgInt no AREsp 1433265/SP, de 30/08/2019; AREsp 309.867/ES, de 08/08/2018; REsp. n.1.193.115/MT; REsp n. 1.800.032/MT, de 10/02/2020.
 AREsp 309.867/ES, de 08/08/2018. processo nº. 5000461-37.2019.8.21.0008