A origem e atual proteção do Direito de sequência dos artistas (droit de suite)

Introdução

“Os artistas não vivem de ar”1 – A frase do escultor senegalês Ousmane Sow sintetiza uma preocupação direcionada e encabeçada pelos artistas de artes visuais, reconhecida pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual2 e por diversas nações.

Em geral, músicos e escritores têm conseguido monetizar com eficiência as suas obras, licenciando ou cedendo os direitos de reprodução e transmissão para editoras ou gravadoras. O mesmo não pode ser dito, entretanto, acerca dos artistas visuais, pintores e artistas plásticos, ou mesmo os autores de manuscritos originais.

Isso ocorre porque suas obras são, via de regra, exemplares únicos e/ou limitados - fator determinante, inclusive, para que essas criações sejam valorizadas no mercado da arte.

A pergunta que surge, então, é: Quais artistas mais monetizam as suas obras na sociedade da informação?

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Figura 1 - Capa do Single Girl from Rio | Fonte: Estadão
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Figura 2 - “Spider” de Louise Bourgeois| Fonte: G1

Tomemos por exemplo a escultura Spider de Louise Bourgeois (na figura 2). Por sua própria natureza, essa não é reproduzida, transmitida e circulada recorrentemente junto ao grande público, implicando em pouco ou nenhum valor a título de royalties (como direitos de representação em calendários, materiais publicitários, mostras, etc.) em favor da criadora, sendo, a toda evidência, a própria escultura em si aquela que corresponde Á maior parte do valor da obra.

Já a nova música “Girl From Rio” de Anitta (figura 1) - na medida em que é uma obra intangível (não é física) - circula ampla e facilmente em diversas plataformas virtuais, gerando vultuosos royalties Á cantora, sem contar, é claro, com a valorização do seu nome e a possibilidade de cobrar cada vez mais altos cachês para apresentações em eventos e shows.

As percepções iniciais permitem concluir, portanto, que intérpretes, compositores e escritores em geral têm maior proveito de suas obras na sociedade da informação, sendo que os artistas plásticos continuam relegados Á venda direta de suas criações, e não da circulação de subprodutos que impliquem transmissão ou reprodução dessas obras, sendo essa a razão para que se idealizasse na França, no início do século passado, o direito de sequência para os artistas, também conhecido como droit de suite.

 

A origem do “droit de suite”: França

Essa preocupação com a devida compensação dos artistas visuais/plásticos tomou fôlego na França após a experiência vivenciada pela família do pintor francês Jean-François Millet, artista que vendeu a obra “L’Angélus” pela quantia de milfFrancos em 1865 (o equivalente a 100 dólares na época).

Em 1889, ou seja, apenas 14 anos após a morte de Millet, o mesmo quadro foi revendido por 553 mil francos (aproximadamente 150 mil dólares) pelo novo proprietário.

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Figura 3 - "L’Angélus" de Jean-François Millet | Fonte: Musée d'Orsay

 

O contexto em que o revendedor da obra obteve grandes lucros, enquanto a família do artista falecido seguiu Á míngua, motivou o poder legislativo francês a agir³.

Foi consagrado, então, o “direito de sequência” (droit de suite) em lei própria no ano de 1920, prevendo o direito dos autores ou seus herdeiros de receber um percentual sobre a mais valia, em caso de revenda da obra original.

Segundo os doutrinadores franceses, esse direito de sequência não se configura um direito patrimonial propriamente dito, pois não traz as mesmas prerrogativas de restrição de circulação e transmissão das obras como os direitos patrimoniais tradicionais.

Importante recordar que, atualmente, aquele que reproduz ou transmite a obra de terceiro sem a sua autorização prévia incide no crime de plágio (artigo 184 do Código Penal), conhecido vulgarmente como crime de pirataria. Nesse contexto, o autor da obra original pode buscar medidas estatais coercitivas junto ao plagiador, ou pirata, para que cesse a reprodução ou transmissão indevida da obra.

O mesmo não se aplica ao titular do direito de sequência, o qual pode buscar a compensação relativa ao seu direito Á mais valia no caso de revenda da obra, mas não pode impedir a referida obra de ser reproduzida, transmitida ou vendida.

Trata-se, assim, de um direito que objetiva completar, dentro do domínio das artes gráficas e plásticas, os direitos patrimoniais tradicionais, com a possibilidade de invocação desse “direito eventual” em caso de revenda da obra4, sendo albergado também em outros ordenamentos jurídicos.

 

O direito de sequência nos EUA

Mesmo nos Estados Unidos, país com clara tradição e foco no copyright (direito de cópia) em detrimento ao “direito de autor” (de tradição civilista, francesa), referida disparidade econômica entre os diferentes grupos de autores é reconhecida.

Um relatório do Register of Copyrights dos Estados Unidos, de 2013, embasado em duas décadas de estudos, indicou uma clara desvantagem financeira dos artistas visuais em relação a outros, por geralmente não terem participação duradoura no sucesso econômico de suas obras5.

Em outras palavras, o Governo Americano, através de um dos seus braços estatais, identificou a mesma discrepância quanto Á possibilidade de monetização das criações de autores como Anitta e Louise Bourgeois, conforme ponderado acima.

A despeito dessa constatação, nos Estados Unidos não existe, atualmente, proteção ao direito de sequência.

Em 1997 a California Resale Royalties Act entrou em vigor prevendo uma participação do autor original da obra em 5% sobre a mais valia obtida nas revendas acima do valor bruto de mil dólares.

A Suprema Corte Americana, em 2018, entretanto, entendeu pela supremacia da lei federal de direitos autorais, retirando dos artistas o direito de pleitear a compensação do direito de sequência.

No Brasil, por sua vez, o direito de sequência encontrou guarida na Lei nº5.988 de 1973, que introduziu a proteção aos direitos autorais. A consolidação dessa proteção só veio com o Decreto nº75.699 de 1975, que promulgou a Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas.

Esse tratado, aderido por mais de 100 países e gerido pela World Intellectual Property Office (WIPO), assegura em seu artigo 14 ter que:

1) Quanto Ás obras de arte originais e aos manuscritos originais dos escritores e compositores, o autor - ou, depois da sua morte, as pessoas físicas ou jurídicas como tais qualificadas pela legislação nacional - goza de um direito inalienável de ser interessado nas operações de venda de que a obra for objeto depois da primeira cessão efetuada pelo autor.

Após essa adesão, a matéria encontrou positivação minuciosa no nosso ordenamento no artigo 38 da Lei nº9.610 de 1998 (LDA), que versa sobre a proteção dos direitos autorais. O dispositivo assegura ao autor o direito irrenunciável e inalienável de receber, no mínimo, 5% sobre o aumento do preço da obra (original) em cada revenda.

Ou seja, se uma obra foi vendida, inicialmente pelo total de R$ 10 mil e revendida por R$ 50 mil o droit de suite recai sobre a diferença de R$ 40 mil, no percentual mínimo de 5% (ou seja, R$ 2 mil).

A obrigação do repasse do equivalente a no mínimo 5% sobre a valorização da obra recai sobre o vendedor ou o leiloeiro (em caso de venda em leilão) sendo que a rigor do parágrafo único do artigo 38 da LDA, esses são reputados fiéis depositários dos valores.

Cumpre relembrar que, embora não exista mais a possibilidade de prisão civil do depositário infiel no Brasil desde a adesão ao Pacto de São José da Costa Rica e edição da Súmula Vinculante 25 do STF, a obrigação legal de fiel depositário perdura enquanto subsistir a pretensão de direito dos autores ou seus herdeiros.

Na hipótese de morte do autor, a Lei de Direitos Autorais assegura, no artigo 416, que os direitos patrimoniais serão transmitidos aos seus sucessores, perdurando por 70 anos, contados do ano subsequente ao óbito do autor, prazo em que o vendedor ou leiloeiro, dependendo do contexto, se mantêm na condição de depositários fiéis.

Entretanto, mesmo existindo, em tese, a figura do leiloeiro ou vendedor como fiel depositário do valor referente Á mais valia como garantia dos artistas ou herdeiros, a fim de que os legitimados consigam fazer valer esse Direito de sequência, é necessária a conservação de elementos que comprovem a variação do preço desde a primeira venda em relação Ás demais.

O exercício prático do direito de sequência no judiciário brasileiro

O filho do artista plástico Candido Portinari, João Cândido Portinari, obteve êxito junto ao Superior Tribunal de Justiça ainda em 2009, ocasião na qual se reconheceu o direito do herdeiro Á participação na mais valia das obras de seu falecido pai, leiloadas pelo Banco do Brasil.

Em 2012, o mesmo João moveu ação contra a galeria Soraia Cals e Evandro Carneiro, do Rio de Janeiro, requerendo o direito de sequência e perdas e danos pela venda de quatro obras de seu pai, Cândido Portinari.

Na ocasião, alegou que, ao tomar ciência do leilão das obras, notificou os réus – galeria e leiloeiro - sobre a necessidade de observância do seu direito de sequência.

A galeria, por sua vez, arguiu que nem toda a transação de compra e venda no mundo das artes gera lucro, e que esse seria o caso dessas obras de Portinari. Três das obras não receberam lance mínimo, não sendo, portanto, leiloadas. Já, quanto Á única obra leiloada, não houve valorização do preço em relação Á transação anterior, segundo a galeria.

Como não houve a comprovação, por João Cândido, acerca do valor da transação anterior, e tampouco da valorização ocorrida na venda subsequente, a sentença de primeiro grau foi de improcedência7.

Essa decisão foi mantida pela 20ª Câmara Cível do Rio de Janeiro ao negar provimento ao recurso de apelação do autor em agosto 2020, nas palavras da relatora Dra. Mônica de Faria Sardas:

Portanto, embora indiscutível o direito de sequência para sua eficácia, faz-se necessária a demonstração da vantagem econômica decorrente da exploração da criação.

Em que pese ter ocorrido a efetiva venda da obra, o apelante se limitou a afirmar o aumento do preço verificável na revenda de obra de arte. Contudo, não há nos autos qualquer prova para fins de comparação entre os preços da primeira venda e das revendas subsequentes apta a demonstrar a "mais valia", sendo certo que incumbia ao autor, nos termos do art. 373, I do CPC 2015, a comprovação do acréscimo do valor patrimonial obtido com a venda da obra no leilão.

Como se vê dos argumentos da desembargadora relatora, o direito de sequência é amplamente reconhecido e albergado no nosso ordenamento jurídico, mas depende de delicada prova.

Por exemplo, em recente julgamento do agravo de instrumento nº2072639-84.2020.8.26.0000, o Tribunal de Justiça do Estado de SãoPaulo reconheceu o direito de sequência de Sandra Brecheret Pellegrini, herdeira de Victor Brecheret, sobre a revenda da obra “Mulher Reclinada”, ocorrida em leilão, uma vez que houve a comprovação incontroversa da valorização da obra nos autos.

 

Conclusão

O direito de sequência não é reconhecido ou difundido no meio artístico como os direitos patrimoniais clássicos – aqueles que possibilitam aos autores impedirem o plágio por terceiros, por exemplo, bem como ceder ou licenciar os direitos de transmissão e reprodução das suas obras.

Ainda assim, o droit de suite se justifica pela própria natureza das obras originais, especialmente as de exemplares únicos, cabendo ressalvar que essa proteção, junto ao judiciário, depende de minuciosa e atenta análise e preparo entre autores/herdeiros e seus procuradores.

Logo, esse instituto jurídico, mesmo esquecido, é especialmente relevante na sociedade da informação, a fim de garantir justa remuneração aos criadores de obras originais e únicas.


1 “Les artistes ne vivent pas de l’air du temps.”

2 wipo.int/wipo_magazine/fr/2017/03/article_0001.html

3 A. Lucas, e H.J. Lucas, Traité de la propriété littéraire et artistique, Éditions Litec, 2001, pg. 295.

4A. Lucas, e H.J. Lucas, Traité de la propriété littéraire et artistique, Éditions Litec, 2001, pg. 296.

5 Segundo estudo do Escritório dos Direitos Autorais dos Estados Unidos da América, datado de 2013: “embora os artistas visuais contem com os mesmos direitos de exclusividade sob o ponto de vista da lei do que os demais autores, na prática esses são prejudicados por características inerentes Ás suas obras, Ás quais são geralmente produzidas individualmente (ou com cópias bastante limitadas) e são avaliadas pela sua escassez. Existem razões políticas relevantes para buscar a solução dessa desigualdade, inclusive o objetivo constitucional de incentivar a criação e a disseminação das obras artísticas”. Fonte: https://www.copyright.gov/docs/resaleroyalty/usco-resaleroyalty.pdf

6 Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil. PÃO Parágrafo único. Aplica-se Ás obras póstumas o prazo de proteção a que alude o caput deste artigo.

7 Autos nº0258468-48.2012.8.19.0001 – TJRJ.