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ADI 7.153 e IPI: embate entre os poderes traz nova insegurança aos contribuintes
Em abril do corrente ano, o Presidente Jair Bolsonaro publicou os Decretos nº11.047, 11.052 e 11.055, os quais reduziram as alíquotas de diversos produtos previstos na Tabela de Incidência sobre Produtos Industrializados (TIPI), que serve como parâmetro para o cálculo do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) a ser pago pelo contribuinte, conforme previsão legal contida no art. 2ºe seu parágrafo único, ambos do Decreto nº7.212.
Receosos com o impacto socioeconômico e a desigualdade concorrencial que a redução do tributo poderia causar Á Zona Franca de Manaus, o Partido Solidariedade propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº7.153 perante o Supremo Tribunal Federal, buscando a declaração de inconstitucionalidade dos referidos Decretos e, liminarmente, a suspensão dos seus efeitos.
O pleito inicial veio a ser satisfeito em 06/05/2022, mediante liminar concedida pelo Relator do processo, Ministro Alexandre de Moraes, onde ele suspendeu (i) na íntegra os efeitos do Decreto nº11.052 e (ii) os efeitos referentes Á redução da alíquota dos produtos produzidos pelas indústrias alocadas na Zona Franca de Manaus e que fazem parte do Processo Produtivo Básico.
Ocorre que a decisão proferida pelo Relator implica em entraves e insegurança para as empresas ao redor do país, pois gerou o presente cenário: por um lado, temos alíquotas reduzidas pelos Decretos do Executivo, que ainda não foram alteradas na TIPI e, por outro, temos estas mesmas alíquotas com a sua eficácia suspensa.
Nesse contexto, a pergunta que fica é: quais as alíquotas que devem ser aplicadas? As revogadas pelos Decretos ou as que ainda constam na TIPI, ainda que estejam com sua eficácia suspensa? A fim de responder esta pergunta, foi elaborado o presente artigo.
1. O Imposto sobre Produtos Industrializados, a Legalidade e a Segurança Jurídica Tributária
Para responder Á pergunta acima proposta, é necessário observar alguns conceitos importantes quanto Á natureza do IPI e um dos princípios norteadores do Direito Público, o da legalidade, em especial no que concerne Á sua aplicação no âmbito tributário.
Este princípio, na sua forma pura, encontra previsão no art. 5º, II da CF, que dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Por decorrência da aplicação da legalidade, as leis e demais atos normativos servem como instrumentos que visam conceder segurança jurídica e previsibilidade de efeitos para aqueles que estão a elas subordinados.
Não obstante, perante o Direito Público, a segurança jurídica, dado o seu grau de importância, também é considerado um princípio, conforme se extrai do art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, que institui que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Uma observação importante a se fazer é que ambos os princípios citados estão previstos dentro do art. 5ºda Carta Magna, ou seja, são cláusulas pétreas que não podem ser suprimidas, o que apenas evidencia a sua importância para o ordenamento jurídico brasileiro.Para melhor elucidar a aplicabilidade da segurança jurídica, discorre o jurista José Afonso da Silva¹:
“a segurança jurídica consiste no 'conjunto de condições que tornam possível Ás pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos Á luz da liberdade reconhecida'. Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída”
Já ao observarmos os seus efeitos perante a legislação tributária, explica o professor Humberto Ávila² em sua obra:
“O conceito de segurança jurídica incide da mesma forma no Direito Tributário. Não há dois princípios da segurança jurídica, um geral e outro tributário. Apesar disso, há algumas nuanças que precisam ser referidas, quer decorrentes do modo como a segurança jurídica foi positivada na CF/88, no âmbito do Direito Tributário, quer advindas da própria natureza da relação obrigacional tributária.”
“Desse modo, o conceito de segurança jurídico-tributária pode ser definido como uma norma-princípio que exige dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário a adoção de comportamentos que contribuam mais para a existência, em benefício dos contribuintes e na sua perspectiva, de um elevado estado de confiabilidade e de calculabilidade jurídica, com base na sua elevada cognoscibilidade, por meio da controlabilidade jurídico-racional das estruturas argumentativas reconstrutivas de normas gerais e individuais, como instrumento garantidor do respeito Á sua capacidade de, sem engano, frustração, surpresa ou arbitrariedade, plasmar digna e responsavelmente o seu presente e fazer um planejamento estratégico juridicamente informado do seu futuro”
Em especial, há de ser observado o elemento fundamental para a existência da relação tributária, a saber, a existência de Lei nos moldes formais e materiais constitucionalmente previstos, consoante art. 150, I, e art. 146 e seguintes da Carta Magna, in verbis:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado Á União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
Art. 146. Cabe Á lei complementar:
I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
II - regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
[...]
Com isso, tem-se que o constituinte atribuiu ao legislador ordinário a competência para regulamentar a criação e parâmetros para cobrança dos tributos.
Contudo, como toda regra tem sua exceção, o IPI não se sujeita ao procedimento legislativo acima, possuindo o Poder Executivo prerrogativa para alterar as alíquotas incidentes neste tributo, conforme normatizado no art. 153, IV, §1ºda Constituição Federal, abaixo colacionado:
Art. 153. Compete Á União instituir impostos sobre:
[...]
IV - produtos industrializados;
[...]1ºÉ facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V.
Isso ocorre pois o IPI tem caráter extrafiscal, ou seja, não tem como finalidade arrecadar verbas para os fundos públicos, mas sim serve como mecanismo de controle e fomento da economia (e, por vezes, de instrumento político).
Neste contexto, é totalmente compreensível o objetivo que o constituinte buscou ao permitir que o Executivo, órgão responsável pela administração estatal, tenha poderes para modificar os percentuais a serem cobrados sobre as operações envolvendo os produtos industrializados e tributados pelo IPI. A celeridade é ponto fundamental para a manutenção da economia, obrigação inerente do Executivo e que não poderia ser delegada para outro Poder.
Não obstante, tal prerrogativa não causa ofensa ao princípio da legalidade, por dois motivos principais: o primeiro, é que está previsto na própria Constituição, e em detrimento da tese defendida por Otto Bachof, ilustre professor alemão, o STF entende não existir norma constitucional (leia-se, positivada na Constituição) inconstitucional, portanto, do ponto de vista material, totalmente válida a prerrogativa; já o segundo motivo é que não há ofensa ou contrariedade Á separação de poderes no que concerne a normatização das relações jurídico-tributárias, pois embora o Executivo possa alterar as alíquotas vigentes, ele deve observar e respeitar os limites impostos pelo Legislativo, que mantém sua competência para alterar tais parâmetros quando entender ser necessário.
2.A TIPI e os problemas gerados pela ADI 7.153
O Decreto nº7.212, de 15 de junho de 2010, regulamenta a cobrança, fiscalização, arrecadação e administração do Imposto sobre Produtos Industrializados e determina, em seu art. 2ºe parágrafo único, que o cálculo do valor a ser recolhido deve ser feito com base nas alíquotas constantes na Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados – TIPI –, como se verifica:
Art.2oO imposto incide sobre produtos industrializados, nacionais e estrangeiros, obedecidas as especificações constantes daTabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados-TIPI(Lei no4.502, de 30 de novembro de 1964, art. 1o, eDecreto-Lei no34, de 18 de novembro de 1966, art. 1o).
Parágrafo único.O campo de incidência do imposto abrange todos os produtos com alíquota, ainda que zero, relacionados naTIPI, observadas as disposições contidas nas respectivas notas complementares, excluídos aqueles a que corresponde a notação “NT” (não tributado)(Lei no10.451, de 10 de maio de 2002, art.6º).
A referida tabela já foi modificada inúmeras vezes no decorrer do tempo por diversos outros decretos, sendo o atualmente vigente o Decreto nº10.923, de 30 de dezembro de 2021, que passou a produzir efeitos em 1ºde maio do presente ano, que também sofreu alterações pelos Decretos nº11.047, 11.052 e 11.055, os quais tiveram sua eficácia suspensa em 06/05/2022 pela liminar concedida na ADI 7.153, ou seja, apenas cinco dias após o início dos efeitos da lei.
Ao analisar a liminar, verifica-se que o Ministro não definiu, até a data da elaboração deste artigo, critérios transitórios para como será realizada a cobrança dos produtos enquanto perdurarem os efeitos da liminar. Neste sentido, fica reduzida a segurança jurídica dos contribuintes na medida em que não possuem previsibilidade e certeza sobre qual será a alíquota incidente no seu produto para que possa corretamente repassar no preço. Concomitantemente, tem-se a Receita Federal vinculada Á uma tabela que possui produtos com alíquotas de eficácia suspensa e não alterada, dificultando na análise de qual alíquota cobrar.
3.A separação de poderes, a confiança no Estado e a proteção do contribuinte
Demonstrado o problema de ordem prática, e não sobrevindo qualquer decisão do STF a fim de regular a lacuna criada, cabe aos operadores do direito buscarem alternativas para tal.
Observando todo o exposto até agora, principalmente no tocante ao discorrido no tópico referente a legalidade tributária, temos que o constituinte (Poder Legislativo), (i) determinou os critérios legislativos para a existência da relação jurídico-tributária e (ii) facultou ao Poder Executivo a possibilidade de elaborar Decretos para a manutenção da alíquota do IPI e (iii) o Executivo, utilizando dessa faculdade, vinculou a cobrança do tributo Ás alíquotas constantes na TIPI.
Considerando isto, nota-se que o constituinte estipulou os limites necessários para a atuação conjunta de Legislativo e Executivo, balanceando os poderes e competências atribuídos a ambos: enquanto aquele, no geral, limita o poder de tributar e cobrar do Executivo, este possui, em certos casos, maleabilidade para ajustar alíquotas de acordo com a necessidade econômica do país, área de sua competência.
Já ao Poder Judiciário restou as suas funções típicas de guardião da lei e da Constituição. Contudo, seu poder de atuação se limita a interpretações e declarações, mas sob hipótese alguma possui poder para mudar o texto da lei, o que seria uma clara afronta ao Poder Legislativo (ou ao Executivo e seus Decretos) e Á estabilidade da separação de poderes e ao Estado Democrático de Direito.
Por outro lado, como citado, é permitido ao Judiciário, ao interpretar a norma jurídica, e isso inclui a sua declaração de (in)constitucionalidade por parte do Supremo Tribunal Federal, atribuir efeitos a esta decisão, seja referente a modulação temporal (efeitos extunc ou ex nunc), seja critérios transitórios para a aplicação da decisão. No caso concreto, não ocorreu nenhuma das duas situações.
Portanto, inexistindo critérios definidos para a situação, há de ser ponderado no caso o rumo a ser tomado, visando manter a separação dos poderes e buscando a segurança jurídica para o contribuinte na utilização das alíquotas previstas na TIPI.Há de ser considerada a preservação do contribuinte que, de boa-fé, estruturou sua operação de acordo com as normas emitidas pelo poder competente, não podendo ser ele lesado por questões de interesse político-econômico, e muito menos permanecer na sombra legislativa do caso. Para elucidar isso, faz-se pertinente analisar outro trecho do professor Humberto Ávila³:
“Assim – como será analisado ao longo do trabalho –, dependendo do objeto, da intensidade e da finalidade da restrição dos direitos fundamentais, o princípio da segurança jurídica deve ser considerado de uma forma ainda mais protetiva. Isso ocorre, por exemplo, quando a tributação tem uma finalidade extrafiscal: se o contribuinte terminou exercendo uma atividade por causa da orientação dada pelo próprio Estado, ainda que ele devesse contar com a mudança futura e, por isso, houvesse razões para que sua confiança não fosse legítima, a sua confiança exercida deve ser protegida.”
Por fim, deve ser também observado o subprincípio da confiança, derivado do desdobramento dos princípios da legalidade e da segurança jurídica, que, mediante a publicação de atos normativos pelo poder público, gera a legítima expectativa nos contribuintes de que tais disposições serão cumpridas pelo Estado, sendo novamente didaticamente explicado pelo professor⁴:
“A confiança, justamente porque o cidadão deve orientar-se por leis válidas e vigentes ou por atos normativos que produzem efeitos, inicia-se com a publicação da lei e com a intimação do ato ou decisão administrativa.O princípio da proteção da confiança só se justifica nos casos em que o cidadão tem a sua confiança, gerada por um ato estatal anterior, frustrada por uma nova manifestação estatal contraditória. “
4.Conclusão
Sendo assim, em observância a segurança jurídica e legítima expectativa dos contribuintes, entendemos que devem ser observadas as alíquotas existentes na tabela TIPI, independentemente da suspensão dos efeitos de alguma delas, até que seja (i) alterada a referida tabela pela Receita Federal do Brasil, ajustando-se Á liminar concedida na AD 7.153 ou (ii) haja a estipulação de critérios transitórios por parte do Supremo Tribunal Federal que visem assegurar, mesmo que temporariamente, a previsibilidade ao contribuinte.
¹ SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual Á Constituição. São Paulo: Malheiros, 2006. Pag: 133.
²Ávila, Humberto. Segurança Jurídica: Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. Pag.: 280-283.
³Ávila, Humberto. Segurança Jurídica: Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. Pag.: 281-282.
⁴Ávila, Humberto. Segurança Jurídica: Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. Pag.: 397-401.