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A sociedade limitada e a possibilidade de emissão de quotas preferenciais
É inegável que as duas principais estruturas societárias brasileiras são a sociedade limitada, regida pelo Código Civil, e a sociedade anônima, submetida Á Lei 6.404/1976.
Inúmeras são as diferenças e peculiaridades de cada estrutura, mas o presente artigo se debruça sobre as diferenças entre as divisões de capital social das sociedades limitadas e das anônimas, que naquela são chamadas de quotas e nesta de ações.
A Lei das Sociedades Anônimas deu um passo adiante e definiu três diferentes espécies de ações a serem adotadas, sendo elas ordinárias, preferenciais ou de fruição[1], diferentemente do Código Civil, que apenas delimitou a responsabilidade dos sócios das sociedades limitadas, sem trazer qualquer previsão sobre diferentes espécies de quotas a serem adotadas.
Neste cenário, buscamos responder Ás seguintes perguntas: quais as diferenças entre quotas, ações ordinárias e ações preferenciais? Seria possível uma sociedade limitada emitir quotas preferenciais? Se sim, qual seria seu benefício?
[1] Destaca-se que as ações de fruição não serão abordadas no decorrer do presente trabalho, já que se trata apenas de ações já amortizadas pela sociedade, mantendo todos os direitos que possuíam anteriormente, de acordo com a sua classe anterior (ordinária ou preferencial), a menos que previsão diversa esteja expressa no contrato ou estatuto social. O foco do presente artigo é discorrer acerca da possibilidade de se adotar, nas sociedades limitadas, quotas que possuem privilégios econômicos em detrimento de direitos políticos.
1. Quotas, ações ordinárias e ações preferenciais
Como dito anteriormente, dá-se o nome de quota Á parcela da divisão do capital social das sociedades limitadas, enquanto no caso das sociedades anônimas chamamos de ações.
No caso da quota, ela está prevista no art. 1.052 do Código Civil, senão vejamos:
Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social.
Essencialmente, as quotas dão a todos os sócios os mesmos direitos e poderes, sendo a gerência e administração da sociedade regulada pela porcentagem dequotas que cada sócio possui, devendo sempre ser observado o previsto no Contrato Social.
Ao contrário do que ocorre nas sociedades anônimas, que podem atribuir diferentes vantagens e limitações Ás suas ações, sejam elas ordinárias sejam elas preferenciais, desde que previsto no Estatuto Social e observado o disposto entre os arts. 15 a 19 da Lei 6.404/1976.
As ações ordinárias focam na distribuição de poderes de administração da sociedade, determinando a relevância e peso dos votos dos acionistas no rumo dos negócios.
Ou seja, sua principal característica é justamente garantir os poderes políticos ao acionista, o que pode até mesmo acarretar no seu controle da sociedade[2]. mesmo não sendo o detentor da maioria das ações ordinárias emitidas, por meio de um mecanismo chamado de “voto plural”[3], formalmente incluído em nosso ordenamento jurídico no ano de 2021.
Já as ações preferenciais não possuem direito Á voto (embora possam eleger membros do Conselho de Administração, caso previsto no Estatuto), mas como o nome sugere, possuem certas preferências se comparadas com as ordinárias, que consistem em (i) prioridade na distribuição de dividendo, fixo ou mínimo; (ii) prioridade no reembolso do capital; (iii) ou a cumulação das duas preferências anteriores.
Ainda, existem preferências específicas que a legislação atribui aos acionistas preferenciais de sociedades anônimas de capital aberto, tais como condições mais favoráveis na distribuição dos lucros, Tag Along, percentuais mínimos de distribuição de dividendos, entre outros.
[2] A depender do número de ações ordinárias que o acionista é detentor, cumulado com o quórum estabelecido para a aprovação de determinadas matérias, o sócio que detém a maioria pode “controlar” a sociedade mediante seu voto, pois mesmo com a soma dos votos divergentes, estes não conseguem formar maioria sobre aquele.
[3] Existem outros mecanismos, além do voto plural, que conferem o poder de controle de uma sociedade ao acionista que não detém a maioria do capital votante, como na existência de acordos de sócios, alta participação ordinária em sociedade de capital pulverizado, entre outros.
2.É possível emitir "quotas preferenciais"?
Como vimos, o Código Civil não atribui Ás quotas características de preferência como ocorre nas ações.
Ocorre que o legislador atribui ao Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI –, a competência para definir os parâmetros e critérios de registros das empresas[4], e utilizando desta prerrogativa e da ausência de regulamentação expressa do Código quanto Á possibilidade, ou não, de atribuição de preferências para as quotas, definiu em sua Instrução Normativa nº81, item 5.3, II, alínea “b”[5], a possibilidade da emissão deste tipo de quota, senão vejamos:
5.3. REGÊNCIA SUPLETIVA DA LEI Nº6.404, DE 1976
O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima, conforme art. 1.053, parágrafo único, do Código Civil.
Para fins de registro na Junta Comercial, a regência supletiva:
I - poderá ser prevista de forma expressa; ou
II - presumir-se-á pela adoção de qualquer instituto próprio das sociedades anônimas, desde que compatível com a natureza da sociedade limitada, tais como:
[...]
- b) quotas preferenciais
[...]
5.3.1. Quotas preferenciais
São admitidas quotas de classes distintas, nas proporções e condições definidas no contrato social, que atribuam a seus titulares direitos econômicos e políticos diversos, podendo ser suprimido ou limitado o direito de voto pelo sócio titular da quota preferencial respectiva, observados os limites da Lei nº6.404, de 1976, aplicada supletivamente.
Ainda, tal entendimento adotado pelo Departamento está concatenado com as normas positivadas no Código Civil, consoante art. 1.053, parágrafo único, transcrito:
Art. 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples.Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima.
Deste modo, as normas da Lei das Sociedades Anônimas, naquilo que não forem contrárias Ás disposições do Código Civil e os tipos societários ali regulados, podem ser adotadas em caso de omissão ou lacuna legislativa[6].Neste sentido, a resposta do questionamento deste tópico é positiva: sim, é possível a emissão de quotas preferenciais em sociedades limitadas, com todos as preferências anteriormente citadas, desde que expressamente (i) previsto no Contrato Social e (ii) haja, também, previsão de regência supletiva das normas das sociedades anônimas.
[4] Vide art. 4ºda Lei nº8.934/94 (Lei do Registro de Empresas), http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8934.htm
[5] Referida Instrução Normativa foi editada após as alterações causadas pela Lei nº13.874, também conhecida como Lei da Liberdade Econômica. https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-81-de-10-de-junho-de-2020-261499054
[6]Ressalta-se que igual possibilidade de adoção de quotas preferenciais se aplica Ás sociedades simples (vide art. 983, que permite a sociedade simples de adotar tais mecanismos), se regulamento diverso não estiver previsto em lei especial (como ocorre com os escritórios de advocacia, que devem seguir as disposições contidas no Estatuto da Advocacia).
3. Os benefícios de emitir quotas preferenciais nas sociedades limitadas
Consoante dados do Mapa de Empresas, disponibilizado pelo Governo Federal[7], o Brasil conta atualmente com 19.862.765 empresas ativas, sendo que as sociedades limitadas representam 4.768.183 deste total, enquanto as sociedades anônimas representam apenas 179.762.
Isso ocorre, pois, via de regra, a sociedade anônima é mais onerosa, e também pela cultura econômica do Brasil ser de alta preponderância de empresas familiares[8].
Deste modo, grande parte das empresas são constituídas sob a forma de sociedade limitada, tanto para diminuir custos quanto para manter apenas membros da família no quadro social da empresa.
Não obstante, existem também empresas limitadas de grande porte, nas quais suas estruturas e meios de funcionamento se assemelham as de uma sociedade anônima, ou seja, a pessoalidade dos sócios não é característica preponderante para as relações sociais, mas sim o capital[9].
Isso pode ser observado em elementos da própria liberdade de disposição sobre a sua parcela do capital social. Os sócios podem acordar em dispensar a necessidade de aprovação dos outros sócios para a venda da sua participação para terceiros, ou até mesmo a diminuição do quórum para anuência deste procedimento. Tais ajustes societários demonstram que a sociedade busca se afastar do elemento preponderante de Institutu Personae e busca converter a relação social para a obtenção de capital.
A adoção de quotas preferenciais neste tipo de empresa pode vir a facilitar a obtenção de investimento privado, forma de captação de recursos amplamente utilizada pelas sociedades anônimas, em especial nas de capital aberto.
Mediante a emissão deste tipo de quotas, o novo investidor poderia aportar capital visando um retorno financeiro, sendo-lhe atribuído preferências e direitos que façam com que ele possa participar dos lucros da empresa sem estar pessoalmente envolvido com os demais sócios.
Por outro lado, os os demais sócios poderiam captar recursos sem se preocupar que um terceiro – de fora da família ou sem vínculo pessoal – pudesse ter voto crucial em deliberações do rumo da empresa.
Neste contexto, mediante um contrato social em que conste, expressamente, a possibilidade de quotas preferenciais, a sociedade limitada, em especial aquelas de grande porte, pode utilizar mecanismos que facilitam a entrada de novos sócios e, consequentemente, de autofinanciamento para viabilizar os seus projetos, sem que isso afete as bases políticas, por vezes familiares, estruturantes da sociedade.
[7]https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/mapa-de-empresas/painel-mapa-de-empresas
[8]No Brasil, por esta peculiaridade nos quadros sociais das empresas, que majoritariamente são constituídos por decorrência de laços sanguíneos ou proximidade, percebe-se que o intuitu personae é um instituto de grande pertinência na prática, pois ele molda a relação dos sócios perante a sociedade, dos sócios entre si, da sociedade perante os sócios e destes perante o mercado e a sociedade.
[9]Diferentemente do que ocorre nas sociedades limitadas, as sociedades anônimas, em sua concepção original, concentram-se na reunião de capital em busca do lucro por meio de um objeto em comum (finalidade social). Já a sociedade limitada pode ser caracterizada como a reunião de pessoas e capital em busca do lucro por meio de um objeto em comum. Enquanto neste tipo a pessoa do sócio é relevante para a constituição do quadro societário da empresa, naquele o capital aportado é o fator relevante.
4.Conclusão
Com base nos elementos debatidos, é possível uma sociedade limitada adotar características das sociedades anônimas, neste caso a emissão de quotas preferenciais sem direito a voto (ou com este direito restringido), a fim de adequar sua estrutura societária Á realidade e necessidade operacional da empresa, tal como a obtenção de investimento privado, desde que tal condição esteja expressamente (i) previsto no Contrato Social e (ii) haja, também, norma expressa de regência supletiva dos dispositivos das sociedades anônimas.