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A recomendação 159/2024 do CNJ e o combate do Judiciário à "litigância predatória". Estamos atacando à raiz do problema?
“O volume desproporcional de processos compromete a celeridade, a coerência e a qualidade da prestação jurisdicional e importa em ônus desmedidos para a sociedade, à qual incumbe arcar com o custeio da máquina judiciária. (...) o Brasil precisa efetivamente tratar do problema da sobreutilização do Judiciário e desenvolver políticas públicas que reduzam a litigância”
O comentário entre aspas que introduz esse artigo é de autoria do Sr. Ministro Luís Roberto Barroso. Consta em acórdão do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.995, ainda em dezembro de 2018, no Supremo Tribunal Federal (STF), que tratou da sobrecarga e eficiência do poder judiciário.
E você? Acredita que o nosso judiciário poderia ser mais dinâmico? Que há uma dificuldade natural para se julgar tantos processos? Por acaso, já pensou que o judiciário custa muito aos cofres públicos?
Essas provocações foram reavivadas pelo próprio Ministro Barroso, durante a sessão do dia 22 de outubro de 2024 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na qual se discutiu sobre a litigância abusiva. Na oportunidade, editou-se um ato normativo com recomendações para o judiciário.
Mas, antes de abordarmos esse recente ato normativo, voltemos brevemente a 2018. Na ocasião, o STF discutia a constitucionalidade da lei 11.495/07, a qual obriga o depósito de 20% do valor da causa a título de caução para ingresso de ação rescisória nas causas da justiça do trabalho. Afinal: é válida uma lei que obriga um pagamento prévio para “rediscutir” um processo trabalhista já julgado?
Quem fez a provocação (entrou com a ação) foi a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), que reúne 34 federações e mais de mil sindicatos patronais filiados em todo o território brasileiro.
A principal tese é de que o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal deveria ser interpretado amplamente no sentido de facilitar o acesso ao judiciário, na medida em que o texto prevê que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Sustentando que apenas 11% do valor investido na Justiça é recuperado por meio das taxas judiciárias (o que significa que quase 90% é subsidiado), Barroso deu interpretação diversa ao inciso XXXV do que os autores da ação. Para o Ministro, esse direito ao judiciário “Significa não apenas a possibilidade de deflagrar a jurisdição, mas, ainda, o direito a um processo justo e efetivo: com prazos razoáveis, decisões sem dilações indevidas, julgados coerentes e não conflitantes, bem como tratamento isonômico e imparcial dos postulantes”.[1]
Em seu voto, até mesmo a Teoria das Escolhas Racionais e a Teoria dos Jogos é abordada: o ser humano toma decisões baseadas no custo-benefício e na possibilidade de ganho. Assim, se o judiciário é “caro”, demandas menores, fúteis e temerárias são naturalmente reduzidas, ao passo que se o judiciário é “barato”, há um incentivo para litigar. Essa reflexão, que leva em consideração aspectos psicológicos e eminentemente humanos, é muito inteligente, reconheçamos.
Concluindo esse julgamento de 2018, o STF decidiu que a lei 11.495/07 é constitucional e um “mecanismo legítimo de desincentivo ao ajuizamento de demandas ou de pedidos rescisórios aventureiros”.
Voltando para 2024, e agora no âmbito do CNJ, o Ministro Barroso e os demais conselheiros editaram ato normativo buscando o combate à “litigância predatória”.
Nessa recente ocasião, o Ministro relatou que, mesmo com o aumento de “produtividade de sentenças e decisões terminativas - possivelmente a maior do mundo” ainda assim se vê a tendência de aumento de processos acumulados no Brasil.
Uma das explicações seria a “litigância abusiva”, que se refletiria num volume desproporcional de processos, comprometendo a celeridade e colaborando para a “sensação difusa de que a Justiça não funciona (grifo no original)”.
Assim, junto com a Corregedoria Nacional (outro órgão do CNJ), recomendou-se aos magistrados a adoção de medidas para “identificar, tratar e sobretudo prevenir a litigância abusiva”. Essa definida no parágrafo único do art. 1º. O texto merece ser lido:
Parágrafo único. Para a caracterização do gênero “litigância abusiva”, devem ser consideradas como espécies as condutas ou demandas sem lastro, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos, entre outras, as quais, conforme sua extensão e impactos, podem constituir litigância predatória.
De fato, muitas demandas do judiciário não têm lastro probatório, ou seja, não têm provas. Outras tantas são frívolas, procrastinatórias, fraudulentas… (veja-se que o artigo segue com muitos adjetivos. Vamos acreditar, por um instante, que isso facilita a vida de um julgador, e não o contrário).
De igual maneira, sabemos que são muitos os expedientes (por vezes duvidosos) para a proteção de devedores. Já outros mecanismos servem de “assédio processual” contra jornalistas e pessoas públicas (como ingresso de processos em localidades aleatórias) e assim sucessivamente.
Por sua vez, no Anexo A deste mesmo ato normativo do CNJ, sob subtítulo “Lista exemplificativa de condutas processuais potencialmente abusivas”, os magistrados são convidados a se atentar a práticas como: pedidos habituais de dispensa de audiência preliminar ou conciliatória; o ajuizamento de ações em comarcas distintas do domicílio da parte autora, ré, ou fato controvertido; procurações sem a certificação digital de padrão ICP-Brasil entre outros tantos atos vistos como “de litigância potencialmente predatória”.
No anexo B, é apresentada a “Lista exemplificativa de medidas judiciais a serem adotadas diante de casos concretos de litigância abusiva”, esse sim, um ponto merecedor de maior reflexão.
Muitas recomendações são claramente legítimas e já praticadas pelo judiciário, como a triagem processual rigorosa, a fim de evitar iguais demandas tramitando (com possíveis decisões conflitantes), documentos apócrifos, mal digitalizados e demais equívocos formais à tramitação de um processo.
Outras sugestões de medidas aos juízes trazidas pelo CNJ, embora legítimas, não são tão difundidas, como a realização de audiências preliminares para verificação da ciência dos demandantes sobre a sua iniciativa de litigar - solenidade que, convenhamos, deveria existir para que a parte pudesse falar perante o juiz livremente - e o maior critério na inversão do ônus da prova, inclusive em processos de relação de consumo.
Entretanto, alguns pontos são simplesmente preocupantes, como a notificação prévia em busca de documentos administrativamente para fins de pretensão resistida (em suma, o autor deve notificar a parte contrária fora do judiciário para obter os documentos em comum, sob pena de sua ação não ser recebida); a possibilidade de requisição de providências à autoridade policial e compartilhamento de informações com o Ministério Público; e a comunicação à OAB sobre indícios de captação indevida de clientela ou indícios de litigância abusiva.
Finalmente, o ato normativo, no Anexo C, sugere algumas medidas exemplificativas de posturas pelos magistrados, tais como a criação de painéis de monitoramento de dados e estatísticas, a utilização de ferramentas automatizadas para atualização de classes e assuntos processuais com base na leitura das peças e outros documentos, e divulgação dos dados para o público.
A preocupação com a frivolidade do acesso ao judiciário é, de fato, legítima. Não há erro quanto ao objeto discutido: o judiciário é sabidamente sobrecarregado e sofre com uma inundação de demandas infundadas e desnecessárias (ainda mais facilitadas com o implemento de processos eletrônicos) - mas há de se discordar quanto à forma.
O próprio STF reconhece que a litigância predatória é uma questão de política pública, ou seja, de responsabilidade do poder executivo. Além do executivo, a questão da acessibilidade ao judiciário é, em grande parte, uma missão do nosso poder legislativo (ainda a ser assumida, ao que parece).
Enfim, definitivamente são determinações que não deveriam partir do poder judiciário.
Assim, na mesma medida em que reconhecemos a quantidade de processos sem prova, em contrapartida, temos que reconhecer que essa é uma missão do próprio judiciário, já que as provas documental, pericial e testemunhal são produzidas durante o processo judicial.
Embora tenhamos mecanismo processual semelhante à “Discovery” do common law americano, que serve como “fase pré-processual de produção provas” (a qual evita o prosseguimento de certos litígios), esta é facultativa e não obrigatória - tão somente em razão de escolha do nosso legislador.
Igualmente, nosso Código de Processo Civil já prevê diversos mecanismos para o juiz combater práticas processuais indevidas, desde as duvidosas, até as desprezíveis, como a multa por litigância de má-fé, a possibilidade de julgamento antecipado da lide, a negativa do benefício da justiça gratuita, entre outros. Na prática, entretanto, pouco se vê o emprego desses mecanismos.
Quanto ao fracionamento processual (mais uma prática tida como “indicativa” de litigância predatória), hipoteticamente é aceitável que uma vítima de acidente de trânsito, por exemplo, somente se sentisse confortável a buscar a indenização dos danos morais e estéticos (por cicatrizes, escaras etc.) sofridos após algum tempo, ou após o sucesso numa ação de indenização das despesas hospitalares e afins. Independentemente do exemplo hipotético, a lei não veda o exercício dos direitos “fracionadamente”, mas aqui estamos diante da resolução do CNJ que busca criar essa limitação.
As recomendações, distribuídas entre os anexos A e C, são, em parte, simplesmente contrárias à lei.
Ora, nossa lei processual faculta à parte pedir a dispensa da audiência conciliatória. Cabe ao judiciário, através do CNJ, editar um entendimento em contrário?
A lei civil não prevê que assinaturas eletrônicas em plataformas em geral não sejam válidas, embora a assinatura padrão ICP-Brasil realmente seja a mais segura. Ainda assim, por mais preocupação que haja sobre a falsificação, poderia essa ser uma exigência feita ao cidadão pelos magistrados e não pelo legislador?
A lei também não traz a necessidade de notificação prévia de pedidos de documentos para que o sujeito seja legitimado a ajuizar uma ação (ou seja, para que haja “pretensão resistida”). Qual a legitimidade do CNJ para orientar os juízes a exigirem essa prova?
Por fim, o que exatamente se busca ao referir expressamente à possibilidade de requisição de providências à autoridade policial? Além disso, oficiar a OAB por uma prática potencialmente prejudicial do representante (e não do representado, frise-se), com grandes chances de gerar tumulto processual, atende aos melhores princípios do Direito? Por sinal, a OAB se manifestou contrária à aprovação do ato normativo, referindo que não teria participado da sessão que culminou com o ato normativo.
Não é demais repetir que muitas dessas medidas podem ser completamente válidas e inclusive bem-vindas para o nosso sistema judicial, entretanto, a objeção aqui recai no judiciário adentrando questões notadamente políticas e legislativas.
Mais do que isso, estamos tratando de uma resolução do CNJ para os seus magistrados que naturalmente, pela característica do próprio órgão, não surge de nenhuma provocação institucional. Ao contrário do julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (tal qual a ADI 3.995 de dezembro de 2018, comentada acima), na qual o STF é provocado por alguém a tomar uma decisão [2], as deliberações e atos normativos do CNJ partem de si mesmo, ou seja, sem qualquer controle ou sugestão de outros poderes/órgãos.
E o que o CNJ poderia fazer legitimamente, então?
Atualmente vivenciamos uma aplicação - duvidosa, para se dizer o mínimo - do que prevê o §3º do artigo 99 do Código de Processo Civil. Ou seja, embora a lei traga a presunção de veracidade da declaração de hipossuficiência da pessoa natural (em outras palavras, bastaria ao “sujeito CPF” declarar que não tem recursos para ter o benefício da justiça gratuita e litigar sem ter que pagar custas), na maior parte das vezes os magistrados demandam às partes trazer ao processo cópias de rendimentos e/ou imposto de renda.
Já que vivemos nesse estado de “vista grossa” ao referido diploma legal, o CNJ certamente poderia incentivar os debates entre magistrados para chegarmos a um consenso mais realista do que seria “insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios”, pois é esse o requisito para a gratuidade da justiça.
Afinal, metade dos processos tramitam sob a “gratuidade” judiciária, sendo, portanto, subsidiados por todos (pelo Estado).
Não é demais lembrar que o judiciário e seus aproximadamente 300.000 membros (entre servidores e juízes), implicam num investimento equivalente a mais de 182 bilhões de reais (1,6% do PIB) por ano [3]. Isso significa que cada cidadão contribui com R$653,70 anuais para a manutenção da justiça [4], que é tida como a mais cara do mundo [5].
Ora, o entendimento jurisprudencial, tanto em âmbito federal, quanto estadual, é de que aquele que recebe até 5 salários mínimos está isento do pagamento de custas processuais, bastando comprovar sua renda até esse limite (aproximadamente R$7.500,00).
Ocorre que, com uma renda per capita dessas, o cidadão já fica entre os 10% - 5% mais ricos do país [6].
Claro, não podemos nos esquecer de que, para os mais desprovidos, o acesso facilitado à justiça, também por meio do benefício da gratuidade, é essencial.
Entretanto, parece evidente a falta de regras justas no jogo, quando se trata de outra parte da população, no caso, do “topo da pirâmide”. E é certo que isso tem consequências: há um incentivo para o litígio.
Pior do que isso, o incentivo atual é perverso, pois para aquele que assiste o Direito e a razão, o processo é demorado e incerto. Os próprios ministros do STF reconhecem isso.
Pelo contrário, àquele que “está no erro”, o judiciário é um prato cheio: baixas taxas para litigar e baixos custos em caso de derrota; demora na tomada de decisões; chances reais de erros processuais que favoreçam à parte equivocada no litígio. Em outros termos, deixar uma desavença virar um processo judicial é percebido como algo vantajoso (quem nunca ouviu uma história com a frase “então busque seus direitos!”).
Ou seja, a alegada guarida do fraco (a proteção daquele que não pode pagar os custos de um litígio) acaba sendo o trunfo do mais forte! Ora, se o forte fizer algo de errado em relação ao fraco, terá que arcar financeiramente com praticamente a mesma coisa dentro ou fora do judiciário - e esse é o verdadeiro custo de um judiciário barato.
Definitivamente o excesso de litígios (a “litigância predatória”) tem contornos já muito bem enxergados pelo próprio CNJ. O sentimento de demora e incerteza no judiciário são verdadeiros e merecem ser tratados.
A grande pergunta é: inchando ainda mais a estrutura do judiciário (veja que o ato normativo do CNJ constantemente fala em maior monitoramento pelo judiciário, painéis, entre outros), ameaçando advogados de denúncias à OAB, ou mesmo prevendo diversos expedientes legais sem qualquer legitimidade institucional - estaremos resolvendo o problema?
Adoraríamos uma simples resposta “sim”. Mas, sabemos que tamanha questão passa por mais de uma instituição. A litigância predatória e a falta de confiança no judiciário só podem ser resolvidas através de um esforço ativo e coordenado entre os três poderes e a sociedade civil.
Além disso, talvez, devêssemos debruçar um novo olhar sobre as “conquistas” de nossa Constituição Federal. Como povo, precisamos enxergar que não há serviço público gratuito e que determinados incentivos e proteções aos “fracos” podem ser facilmente traduzidas em manutenção do poderio dos fortes.
[1] https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749267870
[2] Não se ignora o tema 1.198 de repercussão geral no STF, que aguarda julgamento. Entretanto, a crítica ao protagonismo do CNJ se mantém.
[3] https://justica-em-numeros.cnj.jus.br/painel-despesas/
[4] Para reflexão, O Bolsa Família, que em 2023 registrou o maior orçamento da história, atendendo aproximadamente 22 milhões de pessoas, custou um pouco menos aos cofres públicos: aproximadamente 170 bilhões de reais, conforme fonte.
[6] https://blog.toroinvestimentos.com.br/alta-renda/piramide-salarial-brasil/